A elaboração do Mapa das Ruas de Braga de 1750, manuscrito raro pela sua beleza e originalidade, surge numa época de reorganização administrativa da Sé de Braga, após grave crise económica e financeira, verificada em princípios do século XVIII, resultante da incúria do cabido na administração dos seus bens e do longo período da vacância (1728-1741).
Foros em dívida, causas litigiosas em mãos de solicitadores ou arrastados indefinidamente nos tribunais, desleixo na arrecadação de pensões e despesas perdulárias, constituíram, em largos traços, os maiores problemas com que se debatia o cabido.
Consciente deste estado de coisas, a mesa capitular levou a cabo uma série de acções, destinadas a inverter a marcha dos acontecimentos. Assim, foram readquiridas posses, arrecadados laudémios, lutuosas, colheitas e mais pensões, saldadas dívidas, aforados prazos vagos ou devolutos e nomeados defensores ou procuradores para muitas das questões em litígio.
A execução destas medidas só se tornou possível através da revisão e reordenação de todo o arquivo capitular, do qual foram feitos catorze livros de índices: índice das gavetas (6 vols.), índice das sentenças (1 vol.), índice dos prazos dos casais (3 vol.) e índice dos prazos das casas (4 vol.). Desta obra ciclópica se encarregaram os cónegos, Francisco Pacheco Pereira, Constantino da Cunha Sottomayor e Rafael Álvares da Costa.
Em relação à cidade de Braga, e com objectivos de localização e identificação das casa foreiras ao cabido, foi incumbido o Padre Ricardo da Rocha, por determinação do Cónego Francisco Pacheco Pereira, Provisor do Arcebispado, de proceder à elaboração do Mapa das Ruas, como se pode verificar na legenda que antecede a obra.
No desempenho desta missão, servindo-se do traçado das 70 ruas então existentes e da sua orientação geográfica, o Padre Ricardo da Rocha desenhou, com grande minuciosidade, as 4064 casa nelas implantadas, incluindo assim, não só 1673 casas foreiras ao cabido de Braga, como também casas dízimas a Deus, igrejas, mosteiros, capelas, fontes, portais, pontes, cruzeiros e ainda outras casas foreiras a diversas entidades: mitra primacial, conventos, mosteiros, hospitais, confrarias, senado da Câmara, misericórdia, igrejas, capelas, obra da Sé, outros cabidos e morgados.
Nas casas foreiras ao cabido foi lançada, em cada uma, o número que as identifica nos índices dos prazos. Essa numeração, gravada nas padieiras das portas com a sigla CABº Nº …, correspondia ao número de polícia e foro, conforme curiosamente refere Albano Belino no seu artigo da revista “Portugalia” (vol. 1 de 1903).
Como se depreende do que foi dito, a publicação dos índices dos prazos, pelas referências aos valiosos documentos dos emprazamentos, é condição fundamental para a compreensão e estudo do Mapa das Ruas de Braga.
A data dos emprazamentos, o nome dos emprazadores, a ligação familiar, a categoria social, a dimensão das casas e a sua evolução, o número de divisões, os seus interiores e exteriores, o valor das pensões, etc., – elementos que só a leitura daqueles manuscritos permite determinar -, constituem matéria decisiva para o conhecimento das classes sociais e da sua dinâmica, dos hábitos, dos costumes e do próprio movimento demográfico da cidade.
O regime dos imóveis pertencentes a diversas entidades, o desaparecimento ou alteração de toponímia das ruas e lugares, o alargamento das fachadas das casas e das ruas, a demolição de construções dos sécs. XIII, XIV e XV, a localização das antigas judiarias e de outros edifícios, são também informações passíveis de conhecimento, através de uma análise conjunta dos Prazos e do Mapa.
Por outro lado, para além das soluções arquitectónicas adoptadas em edifícios civis e religiosos, das formas e dimensões das janelas ou do uso de gelosias em certas zonas, o Mapa evidencia a expansão da cidade para zonas com construções iniciadas ou “chãos de casa” já demarcados, e a construção de praças, indicadores seguros de uma época de grande dinamismo económico e social.
Trata-se, pois, de um documento único em Portugal e na Europa, de valor inestimável para o estudo da sociologia, do urbanismo, da arquitectura e da história da arte.
Com base nele, tendo em atenção a Planta de Braga de 1594, de George Braun, e outras plantas posteriores, bem como os tombos do cabido dos sécs. XIV e XV, os livros de prazos e outra documentação (livros paroquiais, Nota Geral, etc.) torna-se possível a obtenção de um retrato físico, económico e social da cidade e da sua evolução através dos tempos.
A publicação deste importante documento e os estudos efectuados num segundo volume, edições levadas a cabo nos anos de 1989 e 1991, concretizaram uma grande aspiração do Arquivo Distrital de Braga da Universidade do Minho.
Vasconcelos, Maria da Assunção Jácome de – In Braga Revisitada 1750 – Mapa das Ruas de Braga 1750-2000 – ©IPM/ADB/UM – Instituto Português de Museus/Museu dos Biscaínhos, Universidade do Minho/Arquivo Distrital de Braga. Braga, Dezembro de 2000.
Maria da Assunção Jácome de Vasconcelos (1955-2006), Directora do Arquivo Distrital de Braga de 1984 a 2006, com cerca de 30 trabalhos sobre o arquivo, os seus fundos documentais e sobre a história de Braga e algumas das suas casas nobres.
Ingenio et Arte
Passados duzentos e cinquenta anos da feitura do Mapa das Ruas de Braga pelo padre Ricardo Rocha, éjusto que se evoque aquele que pode ser considerado como o documento mais sui generis de todo o manancial iconográfico de Braga. Embora inserido num processo mais vasto e pragmático que marcaria a história de uma das mais antigas e poderosas instituições da urbe – o Cabido da Sé Primacial – que o produziu, o Mappa, sempre deslumbrante, individualiza-se como uma janela aberta sobre a memória da cidade.
Dessa ampla urbivisão que tem tanto de preciosa como de útil proporcionam-se, ao observador, os mais diversos panoramas que este entenda vislumbrar. Esse é um dos seus maiores virtuosismos.
Sem ser um mapa no sentido cartográfico da técnica ou de um mero inventário na acepção cadastral da função, pode ainda fundamentadamente ser interpretado e apreciado como uma obra de geografia. E, se nos é permitido vê-lo como uma manifestação dessa antiga destreza do espírito humano também justamente o padre Ricardo Rocha, poderá ser tomado comoumgeógrafo do século XVIII.
Saber do território urbano, o Mappa das Ruas de Braga é ponto de encruzilhada de sensibilidades e conhecimentos. Convoca o cálculo e a história. É simultaneamente sistema e é arte. Sob o filtro proporcional da escala revelam-se, em todo o seu detalhe, a forma e os usos dados, ou consentidos, da memória urbana que se busca. Oferece-se, ainda que cenicamente, a representação da natureza subtil dos sítios onde assenta o edificado sugerido e orienta-se o fruidor para o conhecimento real e potencial dos recursos, da arquitectura, da sociedade e da economia…
Tal como há vinte anos Yves Acoste revelava que a geografia serve antes de mais para fazer a guerra também o mappa resultaria das acicatadas demandas entre o Cabido e a Mitra, também aliaria as motivações administrativas às fiscais, constituindo uma ferramenta de afirmação dos desígnios seculares do corpo capitular.
A obra não é somente instrumental nem apenas diletante. Recorde-se que então, as construções mecânicas, por mais utilitárias que se configurassem, não estavam desprovidas de uma componente estética, como também, a arte, em si, não se libertara ainda da utilidade pretendida pelos seus mecenas. Disto tudo nos dá conta o frontispício lapidar do documento, ao exaltar o ingenio et arte, pelo que podemos admitir que o padre Ricardo Rocha deu tanto relevo à vara craveira do agrimensor como à pena do artista.
Todavia, se das revelações pictográficas emanam todas as conjecturas convidativas à reconstituição possível de uma cidade que definitivamente já não existe, as omissões e os arcaísmos indicam-nos a presença de hierarquias, de prioridades e de distinções na geografia urbana de Braga. O Mappa vale pelo que não é.
Num tempo em que se conheciam e aplicavam, nos círculos mais ilustrados, com sucesso, as técnicas trigonométricas de levantamento topográfico, que de desfrutava do recurso à câmara escura para se proceder à representação rigorosa da paisagem, o aparente produto de isolamento que justifica a particularidade do Mappa não desmerece o valor criativo e inovador que presidiu à sua concepção. Realidade que curiosamente e num certo sentido, tanto se adequa a uma cidade que sendo uma referência da cristandade e sede da primazia das hespanhas, igualmente era pacata e conservadora.
Salvaguardando as devidas proporções, porque não admitir que uma cidade com rito litúrgico próprio, não fique igualmente para a Jiistória pelo método particular com que haveria de levar a cabo um cadastro. 0 Mappa das Ruas de Braga, tendo até superado algumas das principais limitações com que se debatiam, na época, as operações desta natureza, resolveria, com extrema simplicidade, como é próprio das grandes ideias, alguns dos principais problemas colocados.
Certamente que, o padre Ricardo Rocha, talvez nunca venha a obter a projecção do padre Picard, ou o cónego Francisco Pacheco Pereira a láurea de um Marquez de Ensenada, mas um facto é indiscutível, ambos estiveram à altura do desígnio e do melhor do seu tempo. Braga e os bracarenses devem estar pois orgulhosos destes seus antepassados.
Bandeira, Miguel Sopas de Melo – In Braga Revisitada 1750 – Mapa das Ruas de Braga 1750-2000 – ©IPM/ADB/UM – Instituto Português de Museus/Museu dos Biscaínhos, Universidade do Minho/Arquivo Distrital de Braga. Braga, Dezembro de 2000
Bibliografia: Bandeira, Miguel Sopas de Melo – O espaço urbano de Braga em meados do século XVIII – Edições afrontamento, 2000.
O Mapa das Ruas de Braga, foi editado em 1989 pelo Arquivo Distrital de Braga – onde se encontra disponível – com o patrocínio da IBM S. A., no âmbito da Lei do Mecenato Cultura. Tem uma encadernação em madeira e linho, com as dimensões de 360 x 965 mm e com 187 folhas.





